sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Não sei se te devo esquecer, ou se te quero lembrar

Não sei se te quero esquecer, se posso, se te quero lembrar, se consigo.
Tenho esta memória prodigiosa para os afectos e desafectos que não sei até hoje se é boa, se é demasiado. Há, contudo, uma coisa de que estou certa, preciso de falar sobre ti. Depois de tanto tempo e chorar, a querer fazer de conta que não aconteceu  ou a entender o que não é compreensível, depois de tantas noites a dormir abraçada à nossa foto, preciso falar sobre ti, o meu amor por ti, a minha saudade (sem fim) de ti, Pepa.



Sempre gostei de cães, e a minha mãe diz que fui a grande responsável pela adopção do nosso primeiro cão, Putchi, o devorador de torradas com manteiga. E digo adoptar não como uma figura de estilo, porque a verdade é que cá em casa os cães sempre fizeram parte da família, de modo que desde os meus três anos sempre fomos quatro mais um, um cão (pelo menos). Não seríamos a família que somos hoje se não tivessem sido eles a crescer e viver connosco.
Mas a Pepa foi um cão diferente, um lavrador e a cadela dos olhos da minha mana, porque ela sempre tinha desejado ter um. Pepa que mais não é do que diminutivo de chupeta, a palavra favorita da minha mana em bebé, mas que para ela significa amor.
Pepa, sempre foste uma cadela que atraia problemas, dos mais variados. No primeiro dia lá em casa sofreste uma queda de 2 metros a fugires da Tuca, a "feroz" cadela bebé com apenas mais um mês que tu. Perdi a conta às revistas que roeste, os bonecos que desfizeste, os marcadores que roubaste, as máquinas depiladoras que destruíste, os rolos de papel que devoraste, o quadro de peixinho que literalmente engoliste. Foste a cadela mais difícil de ver crescer, porque a tua personalidade e esperteza te faziam levar tantas vezes a melhor sobre nós, como se, efectivamente, estivesses sempre a planear a próxima asneira. Uma porta fechada não era obstáculo para ti, era preciso trancá-la. Quando finalmente cresceste, as tuas traquinices também cresceram. Adoravas caçar, fugias durante horas para depois apareceres em casa com coelhos, galinhas e um dia até trouxeste um peru. Horas mais tarde apareciam os donos dos animais a reclamar o prejuízo.
Mas o que te distinguiu sempre dos outros cães que já tivemos e dos outros quatro com quem viveste, foi a tua personalidade. Foste sempre a mais esperta, a mais gulosa, como esquecer dos teus esforços para entrar nas casotas do Nilo e do Noné, onde não cabias, para roubar a comida deles, ou todas as vezes em que roubavas a taça da comida com a boca e dormias com ela, mesmo estando vazia.. Preguiçosa, só te levantavas se fosse do teu interesse, e só ladravas se fosse importante, mas eras um bocadinho medricas, porque choravas desalmadamente com medo dos trovões e só te calavas quando te trouxéssemos para casa. Quando nevava fugias de nós porque querias ficar no play a lamber neve e rebolar, como se tivesses acabado de tomar banho. Quando nos vias com a tua escova na mão deixavas-te ficar quieta e deitada no chão enquanto te escovávamos e quando terminávamos querias sempre mais. Quando viste a mana grávida parecias uma pessoa a olhar para ela, e saltaste para lhe lamber a barriga. Mas é sem dúvida a tua meiguice que te sobressai em ti, e que vai ser mais difícil esquecer. A meiguice do teu olhar, o teu temperamento, nunca precisaste de açaime, nem quando te magoaste na armadilha de javali  e foste suturada sem anestesia, e surpreendeste toda a gente, até o veterinário que já te conhecia desde bebé... Esta ternura com que te davas a nós fica connosco, como tratavas a pequena M., de tal forma que foi sem surpresa que depois de dizer mamã e papá, ela disse Pepa. 
Nunca tinha tido um cão que gostasse tanto de pão duro como tu, que comesse tanto e tudo, desde cerejas a sopa, e a quem um osso fizesse tão feliz que te exibias para nós a correr e aos saltinhos, que  entrasse no mar eufórica como tu, sem medo das ondas, um cão que se deitasse nas nossas camas (às vezes à sucapa, às vezes com permissão) com a cabeça na almofada e esticada. Brincávamos tanto nesses momentos, a dizer que te devias achar uma pessoa, e estou convencida disso, mas no fundo, como te censurar, se para nós sempre foste.
Não sei mais Pepa, o que lembrar... O que sei é que vou hoje a casa, pela primeira vez, sem ti. Não sei o que é ir a casa e não te ter lá a receber-me, a correr dentro do play a acompanhar o carro, a encostares-te contra a rede para receber um carinho, a receberes-me dentro do play com um salto, só um de contente, para depois te estenderes no chão, à espera de mimos. Não sei se o teu filho, o Bell, sente a tua ausência, ou o que possa fazer a respeito. Não sei.
Pensei que ias ficar connosco até seres velhinha, tu e a tua evidente obesidade, tantas vezes apontada pelos veterinários com censura a nós, por te deixarmos comer tanto. Mas não foi assim, foi tudo tão rápido. Um dias doía-te a pata e choravas ao andar, umas semanas depois estavas tetraplégica, um tumor cerebral que não parava de crescer, e já não eras tu, os teus olhos de ternura já não estavam lá. 
Pus-te no meu colo, a chorar sem controlo, porque já não me podia despedir de ti, já te tínhamos perdido, e ficaste no meu colo até ao fim, e muito depois disso ainda. Tirar-te do meu colo foi o mais difícil, porque foi o último. 
Para mim vais ser sempre aquela lavrador amarela, travessa e meiga, que só queria um sitio fofinho para tirar um cochilo, mesmo que mal coubesse nele, que ainda não sei que vou querer lembrar ou esquecer.